Um pintor é um construtor de imagens, um inventor, um mentiroso, alguém que utiliza mais ou menos sabiamente, ingredientes como os que habitualmente (re) conhecemos nos registos pictóricos mais variados. É um construtor de imagens que utiliza na sua mesa de trabalho, emoções, relações perceptivas e sensoriais variadas, não se limitando contudo, aos registos canónicos dos sentidos aptos para estabelecer a via do entendimento, no que é reconhecido como Arte, dentro do paradoxo do senso comum. Na verdade, são ainda estes, os sentidos com os quais nos relacionamos neste espaço de exposição, mas não só: quando paramos para pensar no que nos envolve, quando nos concentramos verdadeiramente, acrescentamos pelo menos um outro sentido, mais dado ao entendimento das percepções formais: o tacto. E aqui é preciso referir que falamos de um tacto cognitivo, ao nível do entendimento das coisas. É também uma alusão aos fragmentos de memória que habitualmente visitamos. Assim, podemos começar por entender como é feita uma pintura, daquelas tradicionais, com tinta e pincel. Basicamente, existe um suporte plano, dimensionado, habitualmente rectangular, mas que pode eventualmente variar, e um sem número de actuações matéricas sobre esse plano, o que implica um fazer e refazer constantes, pôr e tirar, deixar ficar ou não, acrescentar e mesmo retirar quase tudo o que se lá pôs! Mesmo quando é o caso e nos deparamos com uma superfície quase monocromática, se conseguirmos uma proximidade suficiente para a observarmos verdadeiramente, encontramos camadas e camadas de tinta, de matérias diversas, de actuações pictóricas, de ideias e de memórias escondidas, outras timidamente expostas e apenas para um olhar mais atento. A repetição deixa adivinhar uma submissão ou redenção ao acaso dos processos técnicos e criativos, deixando-nos descobrir euforia e angústia simultaneamente, perante a variedade de respostas imprevisíveis, ou talvez não e cuja autonomia é questionada perante um sem número de intenções. O processo e a pintura fundem-se numa mesma coisa, de carácter pragmático, apresentando-nos as coisas tal como elas são, num plano subsidiário da multiplicidade de entendimentos e das variáveis equacionáveis, também pela enorme possibilidade das formulações que qualquer um de nós apresenta para os mesmos elementos, quer na sua ordem simplesmente matérica, quer no registo cognitivo mais sintético. Promover uma exposição de desenho, em que o corpo é o objecto de referência formal, poderia parecer absurdo e de certo modo, anacrónico, mas é também, uma posição actual, assumida solida e interiormente, procurando, não o retorno a um qualquer academismo, sem a conotação negativa a que o termo tem sido votado, mas a representação de uma realidade a que não podemos de modo algum afastar-nos, que é a nossa própria realidade, física e espiritual, cujo produto é determinante para o estabelecimento das múltiplas relações de entendimento e acção, através da actual panóplia das artes plásticas. De qualquer modo, remetendo-nos para a tríade histórico/ social e política, da qual não é possível dissociar as manifestações artísticas, mascaradas sob qualquer forma e/ ou meio tecnológico, temos encontrado, desde o início deste conturbado e fértil século, o espaço para as mais diversificadas concretizações plásticas, nos mais variados recursos e soluções. Estes novos modos de formar, genialmente criativos uns, outros nem por isso, põem em causa a já construída e tradicional relação arte/ espectador, para provocar também novos modos de digerir um processo artístico, ocupando um lugar ao sol nos apertados meios críticos, omitindo de um modo bastante pragmático, o reconhecimento de processos como o do desenho ou o da representação objectiva. Curiosamente, a par destas ditas transvanguardas, tem-se assistido de facto, a um retorno à utilização do corpo, como referente formal, o que, diga-se, somente em diferentes modos de registo, mas assumindo claramente a recusa ao desenho e aos registos de observação directa. A par da autonomia criativa actual, entende-se que, não só é urgente recuperar um domínio técnico e conceptual do registo gráfico, como é incorrecto marginalizar tal opção, sobretudo quando cada vez mais se incentiva à autonomia criativa e ao reconhecimento da personalidade individual no processo de manipulação plástica.

Auto-retrato é uma variável ao tema genérico proposto, apresentada para a concretização de uma pesquisa de e para o desenho, de acordo com uma vontade de representação subjugada pela necessidade de conhecimento. Ao abordar um tema tão abrangente, parece-me pertinente uma variação tão específica, num lugar e tempo que se determinam pelo recurso abusivo do registo do corpo na quase totalidade das soluções mediáticas apresentadas publicamente. Aqui, estão em causa necessidades como o conhecimento, ou a representação, entre muitas outras, de acordo com um percurso e desenvolvimento pessoal, em que desde o início, se elegeu o corpo humano como referente formal e que se tornou, por si, corpo de investigação para a estruturação de uma linguagem plástica apoiada em elementos construtivos elementares ao desenho e a outros modos de apresentação da vontade e concretização de ideias, tanto no plano da imagem como no processo cognitivo. É na relação entre imagem e ideia, que a análise das soluções adoptadas toma o seu lugar, de acordo com as adaptações estruturantes necessárias à sua realização e consequente apresentação, permitindo sucessivas hipóteses para inúmeras soluções. Adoptar esta variação na forma de um múltiplo auto-retrato, permite-se não só como uma necessidade de expressão, de um modo que não pode ser analisado somente na sua variante processual, mas como uma tentativa de envolvimento afectivo e cognitivo com a expressão, derivada da interpretação gráfica do motivo de representação. É um exercício de disciplina, de sobriedade gráfica e plástica, contrastando com a exuberância das propostas apresentadas anteriormente em diferentes campos de realização. É um exercício de entrega e obsessivamente um afastamento proposital e determinado do efeito fácil e rápido que algumas soluções permitem. O que está aqui em causa, é a busca de uma disciplina, de uma metodologia de e para o desenho, em que o motivo de representação nunca está ausente, pois o processo é contínuo, numa múltipla assumpção de factores emotivos e afectivos, da realidade exterior e do modo como se estrutura essa relação, por vezes dramática e que é necessária para todo o processo criativo. A continuidade do processo provoca a sua estruturação e as soluções apresentadas não passam de um único registo gráfico, repetidamente ensaiado em diferentes estados emotivos; o erro é repetido, assumido e corrigido, permitindo a leitura consecutiva, em fracções de tempo, das várias soluções apresentadas. Os estudos para “Da Virtude”, apresentam-se-nos na continuidade do trabalho anterior, unicamente como uma variante temática, em que se pretende explorar uma relação emotiva através de uma proposta de representação para um estado de alma, a partir de uma sugestão e que é interpretada por uma personagem, de acordo com um programa previamente determinado, cujos limites de representação se apresentam ainda ténues, sendo no entanto definidos pelo carácter descritivo do fragmento e dos estudos analítico/ temáticos. É também “corpo de pesquisa” dentro do universo antropomórfico, procurando o sentido físico e anatómico a par de uma tendência figurativa concreta, que na apresentação em causa, continua a ser considerada marginal, na percepção e construção de um arquétipo para um sistema contemporâneo de representação plástica. Procura encenar relações de limite entre desejo e repressão, entre virtude e pecado, ou sentimento de culpa, se assim o quisermos, revelando um mundo individual numa vontade ou senso colectivo. Procura também estabelecer ligações de recurso ao drama interior da existência, sempre pontuado por antagonismos, em eternas querelas das relações que se estabelecem, apoiadas sobretudo num contraste fundamentado nos pares antagónicos. O que está aqui em causa é todo um processo de pesquisa e análise em que, de momento, é irrelevante o produto determinado, para ser possível a análise do fragmento processual de um modo exaustivo, do que resulta um conjunto de estudos (fragmentos) que por si, dão (uma) resposta directa ao problema proposto. São eles produto resultante? A resposta é afirmativa, pois são variáveis de uma qualquer equação em que a constante é o processo e o produto final toma inúmeras formas. O corpo assume-se como estrutura não só física, mas como ponto de partida para qualquer acção ou pensamento. Assumir a realidade da existência sem a renegar, a partir de registos também eles resultantes de uma acção directa do seu próprio referente. Matéria e cognição estabelecem o elo para a concretização do acto criativo, reafirmando o sentido de alma e da entrega obsessiva na procura da linguagem pictórica pretendida. Assim, o desenho acontece como registo primário e como uma linguagem crua, despida de retóricas processuais, surgindo possivelmente e dentro de um universo específico, como das mais puras das linguagens de registo directo, permitindo também dissecar a anatomia já estruturada da escrita pictórica resultante da caracterização pessoal, das suas vivências e da consequente transformação em produto de observação e análise.

Lisboa, Agosto 1999
Luís Herberto